Each man has a way to betray the revolution (Leonard Cohen)
Durante os últimos cinco anos o mundo ocidental foi liderado por uma coligação estreita de duas nações que prosseguiu uma estratégia internacional dirigida a conter, num primeiro tempo, a repetição dos atentados terroristas do 11 de Setembro; num segundo tempo, a promover a conversão democrática do Médio Oriente e dos países que albergam regimes ditatoriais.
Decorrido este período de tempo é necessário reconhecer que o eixo da liberdade falhou nos seus propósitos e na sua estratégia. As razões são múltiplas e têm sido sistematicamente escalpelizadas. A cadência e o acumular de erros impõe que se altere a estratégia, se mude de executores e se redefinam objectivos melhor ajustados aos interesses das potências democráticas.
Não se trata de - de forma mesquinha - constatar que o elevado número de baixas humanas no Iraque [2900] supõe, por força da derrota republicana nas recentes eleições intercalares americanas, que se recue, deixando o pasto aos coiotes e aos abutres. Mas há que admitir que a continuidade da presença americana, britânica e dos seus aliados no terreno não serve, mais, a causa da democracia no Iraque e no conjunto do Médio Oriente. Mais do que isso é absolutamente prejudicial aos interesses do Ocidente, no médio prazo.
Francis Fukuyama disse-o, de forma ímpar, num artigo que publicou no New York Times, em Janeiro deste ano (“After Neoconservatism”, NYT, 19.01.2006): a aposta neoconservadora na conversão democrática do Afeganistão, do Iraque e dos seus vizinhos entrou em colapso porque não percebeu o contexto social, cultural e geopolítico em que actuava e porque se esqueceu que o que determina a acção dos países é um tríplice: o interesse nacional nas suas várias componentes, a necessidade de impedir que outros o ponham em risco (ou debilitem) e a projecção do poder e da sua influência, no plano internacional e regional. Porque neste domínio como no vácuo quando os grandes Estados deixam de estar presentes, o espaço vazio é ocupado pelos outros.
Como reza a canção o sonho foi bom enquanto durou. A quezilenta realidade da vida internacional impõe que se retorne ao bom senso, ao pragmatismo, ao cinismo dos sorrisos e à dislepsia (assumida) entre as boas intenções e os comportamentos.
Esta mudança de direcção impõe um conjunto de reajustamentos à actuação dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha e do eixo democrático. Desde logo, uma reflexão séria sobre adversários e ameaças; depois, um inventário das metodologias capazes de as diluírem ou conter; terceiro, aquilo que em linguagem clausewitziana se chama a “contagem das espingardas”: apurar quem subscreve e se identifica com os nossos princípios e valores e está (ou não) disposto a correr riscos por eles.
Trata-se de um exercício exemplar - iniciado há pouco tempo pelo Conselho Geral da NATO - que mais adiante se provará útil, auspicioso e bem avisado.
O concerto das democracias1 confronta-se, a meu ver, com três ameaças que se têm organizado e agigantado, aproveitando a “distracção” do Ocidente com a guerra do Iraque. Em primeiro lugar, as forças, as redes do terrorismo internacional, incentivadas pelo exemplo e sucessos da Al Qaeda e que no Médio Oriente, na Ásia muçulmana, em África arregimentam, com enorme azáfama, seguidores, militantes e financiadores.
O terrorismo actual já não é o terrorismo de turbante e barba ridicularizado pelo cartoon de Bin Laden. É um “corporate terrorism” gerido como uma empresa, tecnologicamente bem apetrechado, sofisticado do ponto de vista organizativo, bem financiado e muito apoiado, ao nível da gestão da propaganda, por jornalistas, intelectuais e órgãos de informação sustentados pela Arábia Saudita e os principados petrolíferos do Golfo Pérsico.
Em segundo lugar, os países párias (no calão das RIs os “rogue states”), a Coreia do Norte, o Irão, a Síria e os seus aliados. Países que não formando, por enquanto, uma coligação política, partilham vários valores comuns - a teocratização do Estado, o combate ao cristianismo, a subjugação das mulheres, o silenciamento da imprensa livre, o ódio à modernidade - e se unem numa estratégia conjugada - a desestabilização do Ocidente, o isolamento dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha, a redução da vigilância da comunidade mundial face aos atropelos aos direitos humanos, à propaganda belicista e nuclear; a fragilização das capacidades de defesa e de retaliação táctica do Ocidente e daqueles dois países, em particular.
Também aqui se vem cometendo o erro táctico de considerar estas ameaças incipientes ou destinadas ao fracasso. Preside aqui a falácia néscia que as forças da luz e da liberdade prevalecerão, em qualquer situação, sobre as da anarquia, do obscurantismo e do terror. Não se percebe é se por mão divina ou porque os “outros” são estúpidos.
Em terceiro e último lugar, as grandes nações emergentes asiáticas, a China, a Índia e a Rússia. Esta é uma ameaça de natureza diferente das outras e com finalidade distinta. Desde logo, porque não vislumbra a derrota do Ocidente, o aniquilamento dos seus valores, por outro lado, porque actua ao nível dos “soft powers” - a proeminência comercial, o assédio aos mercados energéticos, o controlo estratégico. Visa circunscrever o poderio do Ocidente e, sobretudo, dos Estados Unidos, no plano internacional, ditando ou pelo menos condicionando a “agenda”. Obrigando à concertação de estratégias, seja no plano bilateral, seja no plano das agências multilaterais.
O enleio pelas emergências benevolentes faz o trote nos media, marcando o tempo e os temas da actualidade, mas dificilmente ilude a questão essencial que o que está em causa é a (velha) rivalidade pelos recursos, pela influência e pelo poder.
Toda esta complexa malha de ameaças e interdependências sugere uma enorme capacidade de discernimento e cabeça fria aos designers da política externa do Ocidente. Não é por acaso que alguns velhos senadores da política internacional se têm dado ao trabalho de vir a terreiro2 repôr algum bom senso. Se as velhas explicações do tempo da Guerra Fria não se ajustam muito a um contexto de multipolaridade ou exogenia, o exercício de diagnóstico e a seriação de ameaças podem revelar-se de extrema utilidade como ferramentas de trabalho e previsão.
Faz todo o sentido voltarmos a soletrar conceitos-chave como appeasement, balance of power, Carter doctrine, collective security, compellence, deterrence, proliferation. Bem como a duvidar das boas intenções pespontadas pelos discursos demagógicos.
Imaginámos um tempo sem predadores, convictos que como que porque milagre mudáramos a natureza dos homens. Percebemos agora que o que mudou foi apenas a latitude, a língua em que se expressam, a religião que têm, a cor da pele. Os interesses porque se batem são os mesmos. Como dizia Benjamin Franklin “make youselves sheep and the wolves will eat you”.
1 Designo por tal a aliança formada pelos Estados Unidos, a Grã-Bretanha, alguns países europeus, o Canadá, o Japão, a Austrália e Nova Zelândia, principalmente.
2 “On negotiating with Teheran”, Henry Kissinger, Herald International Tribune, 1.12.2006.
*Especialista em Relações Internacionais. Escreve neste espaço quinzenalmente às quintas-feiras
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