quinta-feira, fevereiro 24, 2005

E depois do adeus: artigo Dr. Arnaldo Gonçalves. Texto de hoje do jornal Tribuna de Macau

E depois do adeus
Os resultados das legislativas do último fim-de-semana confirmam algumas evidências que aqui fui relatando, ao longo dos meses e trazem algumas novidades à vida política portuguesa. Representam, disse na semana passada, o fecho de um ciclo político, mas não correspondem ao início propriamente de um novo, no sentido que não rompem com o passado, mas são uma sua continuação. Entreabrem pistas interessantes, mas não desenham vias de ruptura com o que são as pechas de um sistema de representação que abriu costuras que dificilmente sararão.
Quando olhei para os resultados segunda-feira de manhã a primeira impressão que tive foi a sensação do dêja vu: uma esquerda maioritária no Parlamento, em ebulição nos sindicatos e nas associações de base; um centro-direita com o resultado mais desastrado em trinta anos de democracia, em recuo atabalhoado com uma liderança decapitada; um Presidente interventor, jubiloso com a reinterpretação [pelos vistos aplaudida nas urnas] dos seus poderes constitucionais; o país previsivelmente dividido entre a legitimidade do sufrágio universal atribuído inequivocamente ao PS para governar com maioria e a promessa do desafio na própria noite eleitoral, nas ruas e nas empresas, por comunistas e bloquistas, de qualquer iniciativa que vise beliscar o status quo em que o país, aparentemente, se revê. Chamado a votos o país disse da sua justiça e escolheu maioritariamente o partido que vai dirigir o nosso destino nos próximos quatro anos. A escolha não me espantou, apenas a sua extensão, que não previ.
O grande vencedor da noite eleitoral foi, inequivocamente, José Sócrates. Recordo as palavras que escrevi, nesta coluna, a 2 de Dezembro: “Sócrates tem condições pessoais para ser um bom primeiro-ministro pelo seu estilo jovem, irrequieto, convincente e carismático[...] a sua candidatura é uma lufada de ar fresco até porque os portugueses estão dispostos a tudo arriscar para se libertarem de um governo inapto e de um primeiro-ministro voraz. Mesmo que isso conduza a um novo ciclo de irresponsabilidade política ao sabor dos acontecimentos e das sondagens”.
Os grandes derrotados da noite, Santana Lopes e o centro-direita, definitivamente não o perceberam. Deixaram-se enredar na verbalização dos slogans vazios, no apregoar da superioridade moral das suas convicções e da “obra feita”. O que se revelou uma total estupidez. Em democracia não há lugar para a superioridade moral dos valores, mas apenas para o confronto dos projectos políticos e para o julgamento dos resultados no fecho de cada ciclo de governação. É ao desempenho a que os eleitores efectivamente se reportam não a qualquer wishful thinking.
Não existe, assim, essa coisa extraordinária como os valores democrata-cristãos apregoados por Paulo Portas. Pelo menos num país católico que recentemente encheu Fátima para render homenagem a um dos seus ícones, isso não faz qualquer sentido. São coisas diferentes, a fé e a luta política e apenas espíritos destorcidos podem ao identificá-los, querer ganhar dividendos.
O país quis, a meu ver, andar para a frente. Cortar cerce com o pessimismo, com as más notícias, com a lógica do aperto pelo aperto. Favoreceu quem lhe mostrou outro mundo, outras hipóteses, porventura falaciosas. O eleitorado não se deixou convencer por políticas de contenção dilatadas no tempo, por sacrifícios sine die, por muito que os números o expliquem e o governador do Banco de Portugal os valide. Governar é gerir problemas de pessoas de carne e osso, não aplicar, mecanicamente, modelos e soluções macroeconómicas desenhadas no papel. O eleitorado puniu nas urnas quem as quer prosseguir, teimosa e cegamente. Fê-lo, uma primeira vez, em meados dos anos 80 quando derrotou as políticas restritivas de Mário Soares [e Ernâni Lopes] e abriu caminho para a maioria absoluta de Cavaco Silva. Repete-o, agora, vinte anos depois, com Durão Barroso e Santana Lopes abrindo o espaço para a maioria absoluta de José Sócrates e do PS. Equivocou-se o eleitorado? Provavelmente, mas é ele, em última instância, quem manda.
Ainda é cedo para fazer paralelos com o passado recente e tecer prognósticos quanto ao provável desempenho de José Sócrates e do seu governo. O jovem político tem qualidades [que sublinhei], mas não governará sozinho. Terá uma equipa e executores das suas orientações. Os governos não são unicéfalos. São equipas, estilos e versatilidades. Os primeiros-ministros são cada vez mais reflexo desse trabalho em equipa, mais que protagonistas solitários. Estejamos atentos, portanto, aos indigitados vice-primeiros-ministros e aos ministros das finanças e da economia.
É salutar, em democracia, que os novos governos usufruam de um crédito de confiança nos meses que se seguem à vitória nas eleições. É razoável que os comentadores lhes concedam, também, esse crédito e benevolência. O comentador, mesmo quando tem convicções políticas fortes, deve assegurar a independência e o balanceamento dos seus juízos. Sem necessidade de se proclamar uma abstencionista não pode nem deve ser uma câmara de eco partidária. O comentador não faz por isso grandes amigos. Os idiotas normalmente avaliam o mérito do que sai escrito pelo grau de aderência às suas ideias. Os “bons” são os que se identificam com as paixões clubistas, mesmo as mais irrealistas, os “outros” não prestam. Não é importante, contudo, que o comentador tenha razão. O exercício da opinião escrita ou falada não é uma ciência exacta, como aliás o não é a ciência política. É uma ponderação, uma avaliação normalmente intuitiva. O importante é que o comentador se eleva acima das paixões e tenha a vontade e o discernimento de dizer o que pensa.
No campo liberal é agora tempo do PSD arrumar a casa, ganhar uma nova liderança e desenvolver uma oposição forte e consistente no parlamento, afinal a casa da democracia. O actual presidente do partido deu um sinal importante quanto à necessidade de renovação ao demitir-se da liderança abrindo caminho para a regeneração indispensável. O país exige-o, os próximos combates eleitorais, autárquicas e presidenciais, impõem-no.
* Especialista em Relações Internacionais. Escreve neste espaço às quintas-feiras.

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