O que é ser Conservador?
Num dos seus textos mais fecundos, inserido como postscriptum à sua obra maior The Constitution of Liberty, o economista e filósofo austríaco naturalizado americano, Friedrich Hayek, questionava-se porque - apesar de o tentarem designar como tal - não se achava um conservador. Num tempo - lembrava logo a abrir - em que a maior parte dos movimentos que se pretendem progressivos advogam as mais amplas restrições à liberdade individual, todos os que acarinham o valor da liberdade devem colocar as suas energias ao combate a estes movimentos. Nesta empresa, [os defensores da liberdade] encontram-se, muitas vezes ao lado dos que habitualmente resistem à mudança, embora de um ponto de vista substancial as suas posições sejam as mais díspares. E continua: "o conservadorismo propriamente dito é caracterizado por um atitude legitima, provavelmente necessária, e largamente difundida de oposição à mudança drástica". "Tal ideologia tem tido, após a Revolução Francesa e por um século e meio um papel relevante na política europeia e até ao advento do socialismo o seu opositor foi o liberalismo" conclui.
Reconhecendo-se partidário do que designa pelas ideias liberais ou o "partido da liberdade" Hayek dissipa a mais breve insinuação de confusionismo, referindo que a mais decisiva objecção a qualquer conservadorismo que seja digno de ser designado como tal é o facto de não se poder apresentar como alternativa à direcção para o que o mundo se dirige, mesmo que procure resistir às tendências actuais, atrasando desenvolvimentos indesejáveis mas revelando-se incapaz, porque não acrescenta outra direcção, de prevenir tais desenvolvimentos. A esta guerra de razões entre conservadores e progressistas, Hayek contrapõe a necessidade do liberal questionar não "quão depressa ou até onde" o mundo caminha, mas para onde ele vai. Ou seja, o liberal não é adverso à evolução e à mudança em si e. Quando a mudança espontânea [promovida pela sociedade] é dificultada pela intervenção do governo, o liberal deve exigir a mudança dessa política. Para o liberal o que é mais necessário no mundo é a remoção criteriosa dos obstáculos ao livre crescimento. Isso não significa [Hayek lembra as instituições americanas] que não seja possível defender-se - a um só tempo - a liberdade individual e instituições há muito estabelecidas. Ou seja, a mudança pela mudança é absolutamente estéril como o conservar por recusar o que é novo [por ser novo] inconsequente.
Revi-me na exegese deste texto notável de Friedrich Hayek, a propósito do debate cordato mas já crispado entre "progressistas" e "conservadores", sobre a personalidade e orientações teológicas de Joseph Ratzinger, o novo Papa Bento XVI. Na imprensa portuguesa e internacional, vários têm sido os testemunhos destinados a explicar a escolha da Cúria Pontifícia, ao 4.o escrutínio, adivinhando no magistério do novo Papa linhas de fractura sobre os avanços doutrinários do Concílio Vaticano II, resistências à questão das vocações religiosas, diatribes à separação entre ensino laico e o ensino religioso, ambivalência no diálogo entre obra evangélica e preservação da herança da modernidade. Minagem à convivência, diria Santo Agostinho, entre a Cidade de Deus e a Cidade dos Homens. Num tom mais sensacionalista, outros explicam-no por um ajuste de contas entre a Opus Dei e a os esquerdistas da Igreja da América Latina.
Tenho alguma dificuldade em me situar nesta polémica, como livre-pensador e alguém de fora da Igreja que se revê [e se basta] numa espiritualidade exclusivamente deísta. Não deixo, no entanto, de ser sensível a alguns argumentos aduzidos e interrogo-me, também, se a Igreja terá feito uma escolha à dimensão dos desafios que tem[os] adiante depois da personalidade fascinante e singular de João Paulo II. Ou para abreviar razões se se terá limitado a seguir a sua vocação. A Igreja Católica tem hoje um prestígio, uma visibilidade, uma legitimidade e uma "leitura" multicultural que não encontra paralelo na história, para cá do Cisma de Avinhão. Representando o que Max Weber chamou um Poder Tradicional, a Igreja constitui uma referência incontornável no mundo, um sujeito de relações internacionais relevante e um poder carismático que atrai multidões, dentro e fora do "rebanho" cristão. Poderá mesmo falar-se [cito Oriana Fallaci de cor, do impressionante A Raiva e o Orgulho] num renascimento da ideia "Civilização Cristã" como combinação única da herança do iluminismo e da vitória da Razão sobre o irracionalismo com a doutrina social da Igreja da dignidade natural do Homem, da inalienabilidade e intemporalidade dos direitos fundamentais. Nascemos - malgré todo o nosso afirmativo laicismo e ateísmo à francesa - numa paisagem de igrejas, de conventos, de Cristo, da Virgem, de sinos e referências religiosas, diz Oriana. O que nos ajuda a encontrarmo-nos na nossa dimensão de Europeus e Ocidentais.
Este é o legado que Joseph Ratzinger toma. Quando afirma que "estamos a avançar para uma ditadura de relativismo que não reconhece nada como certo e que tem como objectivo central o próprio ego e os próprios desejos" [missa na Basílica de S. Pedro, 18.04.2005] não lhe posso deixar de lhe conceder razão embora tema o que a asserção possa ter outra leitura: o facto de a alguns ser conferido, por predestinação, o poder sacro de nos dizer o que é verdade e não é. Não nos questionamos com a falta de referências morais e éticas num mundo que dificilmente aceita a diversidade e o pluralismo? Não nos queixamos, como professores, da falta de valores morais dos jovens, da sua ausência de porquês, da sua rendição ao hedonismo e consumismo mais estéreis? Então porque somos avaros em criticar o relativismo esconso? Porque fica mal, porque é bota-de-elástico?
Qual é a validade de uma moral de autenticidade que ficciona a liberdade singular do Sujeito não apenas como a condição necessária, mas como a condição suficiente da moralidade? Se a liberdade do singular Eu é o único valor que se me impõe, objectivamente, porque é a expressão da minha liberdade, do meu livre arbítrio, seja o que for que eu faça - desde que seja autêntico [isto é, sincero comigo mesmo] - é verdadeiro, no plano moral. Até onde nos pode levar tal relativismo moral? À ausência completa de valores universais e perenes? Ao arbítrio da pura liberdade,
A questão não está - parece-me - em a Igreja escolher um Papa conservador ou reaccionário, mas provavelmente em perceber qual é o seu projecto [para onde vai agora] e se deve modificar os seus postulados principais, em matéria de doutrina, para apaziguar uma certa linha de pensamento que quer a sua transformação democrática, a descentralização do processo decisório, a banalização das elites ou a consensualização do dogma, dentro de um caldo de euforia participativa.
Se consigo antecipar a postura intelectual do novo Papa, não é esse o caminho por onde se apresta a levar a Igreja. E por uma razão muito simples. É que no dia em que a Igreja ceder ao que é fácil porque é popular nega a sua natureza como comunidade de fé e élite moral. Para usar um velho aforismo nas questões de fé crê-se ou não. Não se discutem.
Terá a Igreja que evoluir? Seguramente, porque é para além de uma instituição espiritual uma instituição terrena. Desde logo na relação com os fiéis de outras religiões, com a enorme bolsa muçulmana que vive nas nossas cidades e com quem é tão dificil interagir. Com as novas crenças evangélicas que tomaram de rompante as Américas e hoje se alcandoram à Europa, num sentido de comunidade que só se lembra na Igreja antiga, a de Jerusalém. Também com os que se reivindicam do livre pensamento, do laicismo, do escocismo e que tão injustamente têm sido tratados por algumas das suas instituições. Deve fazê-lo, no entanto, sem o pecadilho da soberba e da arrogância moral que assinalam o rasto sangrento e cruel da Inquisição.
São estes alguns dos desafios que se colocam ao novo Papa Bento XVI. Conservare mas sem romper com a dimensão preciosa da modernidade que é a metade universalizante do cristianismo.